Qual o segredo dos técnicos portugueses ?

Reportagem veio a Portugal investigar os segredos dos técnicos que tem feito sucesso mundo afora

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Como numa ironia histórica, o Brasil parece ter sido o último país a descobrir os técnicos portugueses.

O trabalho de Jorge Jesus no Flamengo não encontrou precedentes no futebol brasileiro e causou uma mexida em algumas das “estruturas sagradas”. Os cinco títulos e quatro derrotas do Fla entre 2019 e 2020 fez a exigência sobre os treinadores daqui aumentar.

Entre os clubes, quem não foi atrás de um Mister para chamar de seu importou alguém para o banco mesmo assim. E quem ficou com algum “professor” brasileiro o fez sob a justificativa de um projeto de futebol propositivo aos moldes das ideias deixadas pelo português.

Na Europa, o processo é mais antigo e um pouco mais prático: os times foram direto na fonte e trouxeram técnicos portugueses de baciada.

Os profissionais lusitanos dominaram as principais ligas europeias. São a maioria nas comissões, se somadas as ligas da Espanha, Itália, Alemanha, Inglaterra e França. Nestas duas últimas, só não são mais numerosos que os técnicos naturais dos respectivos países.

Mas como um país de população inferior à cidade de São Paulo e cuja seleção nacional só foi vencer um título em 2016 domina a direção técnica do futebol mundial? É o que vamos contar a seguir.

José Mourinho e os técnicos portugueses

Ainda que a exportação de técnicos portugueses seja resultado de um processo amplo de consolidação de cultura educacional e desportiva, é a partir de José Mourinho que ela começa de fato a tomar forma.

A conquista das duas principais taças da Europa — e de todas as disponíveis em Portugal — com o Porto no começo dos anos 2000 o capacitou a furar a bolha e ir treinar os gigantes do Velho Continente.

O trabalho e principalmente os títulos de Mourinho no Chelsea, na Inter de Milão e no Nuno Espírito Santo, por exemplo, foi o goleiro reserva do Porto e pôde observar o treinador de perto durante seus anos nos Dragões.

Mais, porém, do que lançar a “grife” dos técnicos portugueses, Mou consolidou um conceito de gestão técnica e estabeleceu a base do que é chamado de futebol moderno. Os melhores executores dessa ideia, é claro, são seus compatriotas.

Os técnicos portugueses e a periodização tática

No centro do trabalho de Mourinho e de muitos dos bem-sucedidos técnicos portugueses está a periodização tática, um modelo de planejamento de treinos e de preparação para as partidas.

Sua ideia principal é a montagem de treinamentos integrados a partir da proposta de jogo do time.

Em outras palavras, é um método que treina, ao mesmo tempo, a parte técnica, tática e física e sempre com o estilo de jogo da equipe como fio condutor. Isso quer dizer que todos os trabalhos são feitos com a bola no pé e simulando de alguma maneira o que os jogadores devem fazer nas partidas.

Uma equipe que deseja contra-atacar, por exemplo, vai, num único exercício, desenvolver a resistência de seus pontas, a técnica de lançamentos dos seus meio campistas e o posicionamento dos seus defensores durante o ataque.

Mais do que um capricho, a periodização tática busca potencializar a eficiência dos trabalhos e principalmente a dos jogadores dentro de campo. É uma metodologia científica que cobre o maior número possível de detalhes de uma partida de futebol. E dá resultado, pelo jeito.

A tradição acadêmica dos técnicos portugueses

Um dos pontos mais importantes para se entender o sucesso dos técnicos portugueses mundo afora é que no país ibérico o futebol é tradicionalmente uma vocação acadêmica.

Enquanto muitos países começam a estruturar cursos e a formar seus primeiros profissionais voltados especificamente para o futebol, as universidades lusitanas já contam com departamentos completos e décadas de publicações.

A própria periodização tática é obra de um professor aposentado da Universidade do Porto, o ilustre Vítor Frade.

Assim, qualquer um que deseja ter a certificação da Federação Portuguesa para ser treinador profissional precisa passar por cursos universitários ou pelo menos um com as mesmas bases curriculares da Academia.

Dessa forma, seja um ex-jogador, como Nuno, ou um estudioso, como Mourinho, todo treinador português tem a mesma base teórica e um padrão de qualidade certificado por décadas de estudo da bola.

A escola de treinadores portugueses

Mas de fato existe uma escola de treinadores portugueses? Uma pergunta difícil de responder.

Não há, pelo menos visivelmente, um padrão de jogo clássico ou consagrado como o toque de bola holandês ou espanhol, a defesa italiana, a intensidade inglesa ou alemã, sequer uma tradição técnica como no Brasil, França e Argentina.

Alguns técnicos falam em negação de espaços e consciência tática, e outros teorizam sobre a cultura de resultados dentro de um mercado saturado de profissionais de ótima formação.

De fato, ambas as visões podem ser identificadas na campanha do título português na Eurocopa de 2016, mas ainda assim falta a identidade e a história das outras escolas citadas.

É só comparar os trabalhos de Jorge Jesus e José Mourinho, de ideias fundamentalmente opostas sobre futebol, independentemente de compartilharem mecanismos de jogo e conceituações táticas.

A adaptabilidade dos treinadores portugueses

Há, no entanto, algo que une absolutamente todos os treinadores portugueses: a adaptabilidade. Ela está na raiz da periodização tática e no seio da própria cultura popular do país.

Das seculares políticas de navegações como forma de equilibrar desvantagem terrestre aos contemporâneos investimentos criativos para sair da crise econômica, Portugal demonstra uma capacidade histórica de superação de adversidades por meio da adaptação.

José Gomes, que já foi técnico de quase metade da Liga Portuguesa, diz que os métodos de treinamentos unificados surge de um “jeitinho”, de uma adequação dos treinadores à estrutura disponível no fim do século XX, quando o país estava em sérias dificuldades financeiras.

Outro aspecto sociocultural relevante nesse caso é o histórico de imigração dos lusitanos, que são geralmente bem aceitos, até por saberem navegar a cultura na qual estão inseridos. Em 2019, para se ter noção, 22% dos portugueses viviam fora do país.

Esse elemento cultural parece ser verdadeiro dentro do universo do futebol, o que é comprovado não só pelo número de treinadores portugueses espalhados pelo mundo como pela diversidade de países e escolas de futebol em que eles são bem-sucedidos.

A invasão portuguesa no Brasil

Combinados essa bagagem cultural, o conhecimento tático e o sucesso absoluto de Jorge Jesus no Flamengo, o futebol brasileiro começou a experimentar o que pode vir a ser uma verdadeira “invasão portuguesa”.

Só em 2020, foram três portugueses contratados para comandar times brasileiros. No começo do ano Augusto Inácio foi para o Avaí (e durou apenas sete partidas, é bom dizer). Já no fim do ano, menos de um mês separou as contratações de Ricardo Sá Pinto, pelo Vasco, e Abel Ferreira, pelo Palmeiras.

Se estes dois últimos terão o mesmo sucesso do Mister em terras brasileiras, é difícil dizer. Mas é inegável que a fama já está feita. Resta saber se o prestígio se manterá.

Melhores técnicos portugueses: do Brasil a Premier League
  • José Mourinho
  • Jorge Jesus
  • Nuno Espírito Santo
  • Fernando Santos
  • André Villas-Boas
  • Leonardo Jardim

José Mourinho

Mourinho já venceu os Campeonatos Português, Inglês, Italiano e Espanhol (Aleksandr Osipov/CC)
O Special One, o que abriu as portas aos conterrâneos.

Atualmente seus times estão mais pragmáticos, mas nos seus trabalhos iniciais desenvolveu um modelo de jogo que venceu não só duas Champions League como pelo menos um título nacional em cada um dos quatro primeiros países em que passou — e que só foi rivalizado pela revolução da posse de Pep Guardiola.

Jorge Jesus

O Mister já empilhava títulos em Portugal antes de “zerar” o futebol brasileiro. Com um futebol intenso, ofensivo e muito bem organizado, Jorge Jesus só não conquistou a Copa do Brasil em sua passagem pelo Flamengo.

O número taças maior do que derrotas dificilmente será superado por aqui.

Nuno Espírito Santo

Discípulo de Mourinho, Nuno impressiona pelo sólido trabalho desenvolvido no Wolverhampton, com quem subiu da segunda divisão inglesa em 2017.

Seu estilo de jogo que combina bolas longas com uma rígida organização posicional tem feito os Wolves brigar de igual para igual na maioria dos confrontos com os times do Big Six.

Fernando Santos

O mais próximo de um Felipão que a Academia portuguesa produziu, Fernando Santos foi o turrão que fez de Portugal uma seleção campeã europeia, em 2016, e a primeira vencedora da Liga das Nações, em 2019.

Que o jeito durão não o engane: Santos é um dos melhores estrategistas do negócio. Tanto que foi premiado o Melhor Treinador de 2019 pelo IFFHS, principal instituto de estatísticas de futebol do mundo.

André Villas-Boas

Tratado como sucessor de Mourinho, seja pela dissidência da comissão técnica do Special One, seja pelos títulos nacional e europeu no Porto, André Villas-Boas é certamente um dos grandes nomes da escola portuguesa de treinadores.

A alta expectativa, porém, o traiu, tendo ele falhado nos trabalhos no Chelsea e no Tottenham. Mas as taças conquistadas no Zenit e o bom trabalho no Olympique de Marselha o credenciam para o posto, mesmo assim.

Leonardo Jardim

Leonardo Jardim foi o técnico que levou o Mônaco ao título do Campeonato Francês em meio à hegemonia do PSG e que no mesmo ano chegou até as semifinais da Liga dos Campeões.

Desse trabalho, saíram alguns dos grandes jogadores dos grandes clubes do futebol mundial, como Mendy, Fabinho, Bernardo Silva e o principal, Mbappé.

Principais títulos de técnicos portugueses
  • Eurocopa: Fernando Santos (2016)
  • Liga dos Campeões: José Mourinho (2004, 2010)
  • Copa Liberadores da América: Jorge Jesus (2019)
  • Liga Europa: José Mourinho (2003), André Villas-Boas (2011)

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