Três maridos, 11 filhos, mil intrigas: conheça Maria da Glória, a brasileira que reinou em Portugal


Por Marcelo Remigio.

Ofuscada pelo irmão Pedro II, Maria enfrentou traições e rebeliões durante seu governo em Portugal, e morreu aos 34 anos ao dar à luz seu 11º filho.

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Maria da Glória foi a primeira filha do imperador Dom Pedro I com a imperatriz Leopoldina, nascida no Brasil e rainha de Portugal. (Foto: O Globo)

Há exatos dois séculos, percorria os corredores do Palácio da Quinta da Boa Vista — consumido no ano passado por um incêndio —, no bairro de São Cristóvão, a informação do nascimento da primeira filha do imperador Dom Pedro I com a imperatriz Leopoldina.

A pequena monarca de olhos claros e cabelos loiros tinha nome de princesa: Maria da Glória Joana Carlota Leopoldina da Cruz Francisca Xavier de Paula Isidora Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga, princesa da Beira e do Grão-Pará. E, em poucos anos, se tornaria rainha de Portugal.

Brasil e Portugal comemoram hoje os 200 anos do nascimento de Maria da Glória, brasileira que, aos 7 anos de idade (em 1826), foi proclamada rainha portuguesa, como Maria II.

Irmã do futuro imperador Pedro II, o caçula da família — e o monarca que por mais tempo governou o Brasil —, Maria da Glória ainda é pouco conhecida dos brasileiros.

Se aqui ela assumiu papel coadjuvante, ofuscada pelo irmão mais popular, em Portugal a princesa é celebrada como protagonista não de um conto de fadas, mas de uma narrativa de traições e ação para se manter no poder.

Para garantir seu reinado, resgatam os historiadores, Maria da Glória precisou recuperar o trono usurpado pelo marido, seu próprio tio, fruto de um casamento acertado pelo pai.

Ao governar Portugal, a princesa-rainha enfrentou rebeliões; foi chamada de tirana; teve três casamentos em que não escolheu marido; falava aos amigos que “sua função era de parir herdeiros”; ficou viúva e morreu no 11º parto com apenas 34 anos. Mesmo assim, conseguiu deixar a casa em ordem aos filhos que viraram reis.

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Diretor do Museu Imperial de Petrópolis — que guarda objetos pessoais, pinturas, cartas e documentos de Maria II —, Mauricio Vicente Ferreira Júnior conta que ela se tornou rainha ainda criança, quando seu pai, Pedro I, abdicou do trono de Portugal em seu favor, após a morte de Dom João VI (pai de Pedro), para permanecer no Brasil e manter a família no reino português.

— Para isso, foi acertado o casamento da princesa com seu tio, o Infante Dom Miguel. Mas, durante a regência, ele se autoproclamou o rei absoluto de Portugal, com apoio da mãe, Carlota Joaquina, dando início a uma guerra com o irmão — conta Vicente Ferreira.

A princesa brasileira, com a ajuda do pai, conseguiu derrubar o marido aos 15 anos. O casamento, até então reconhecido pelo Vaticano, não chegou a se consumar fisicamente e acabou anulado.

Maria da Glória assumiu o trono de Portugal em 1834, e seu pai, então Duque de Bragança, foi o regente. No ano seguinte, já órfã de pai, a princesa se casou pela segunda vez, em um novo acerto em família. O noivo, Dom Augusto de Beauharnais, era irmão da madrasta de Maria da Glória, Dona Amélia, e neto de Napoleão Bonaparte.

— A rainha não teve nem tempo de ser feliz, pois seu novo marido morreu dois meses depois do casamento — conta o diretor do Museu Imperial.

Dom Augusto enfrentava uma grave inflamação que se espalhou pela garganta, esôfago e estômago. À época, foi levantada a hipótese de envenenamento, descartada com uma necrópsia feita por uma junta médica de brasileiros e estrangeiros, convocada por Maria da Glória e sua madrasta. Há registro de que o monarca teria sido vítima de uma angina (dor no peito causada pela redução do fluxo sanguíneo para o coração).

A rainha Maria II se casou, então, pela terceira e última vez, com Fernando Augusto de Saxe-Coburgo-Gotha, que passou a príncipe consorte em mais uma união por acerto.

O casal teve 11 filhos, sendo dois reis de Portugal. Todas as gravidezes foram de alto risco, por ter a rainha portuguesa a saúde frágil. A fama de mulher com vida sexual ativa percorreu o reino e ganhou força ao longo dos anos entre os pesquisadores.

No livro “Maria da Glória – A princesa brasileira que se tornou rainha de Portugal”, a historiadora Isabel Stilwell faz referência à vida íntima da rainha, que não queria dar margem, nem tempo, para o marido pensar em outra mulher.

De acordo com historiadores, a preocupação amorosa de Maria da Glória em relação ao marido remontava à sua infância. Quando criança, a então princesa presenciou por inúmeras vezes as brigas entre seu pai e sua mãe. O motivo: as traições de Pedro I.

Entre as amantes do pai, Domitila de Castro, a Marquesa de Santos, com quem conviveu. Maria da Glória perdeu a mãe ainda criança, aos 7 anos. Sua relação com o pai, apesar das brigas e agressões à Imperatriz Leopoldina, foi fortalecida. Era considerada a preferida de Pedro I.

Educadora e ciumenta

Relatos históricos encontrados em cartas dão conta de que Maria da Glória, mesmo quando criança, desafiava o pai e ameaçava fugir de casa para morar na Europa com os avós por parte de mãe, caso suas vontades não fossem feitas.

— Já adulta, em Portugal, ela dizia aos amigos que sua função era parir filhos para Portugal e garantir a sucessão do trono. Maria da Glória abriu mão de sua juventude e assumiu o papel de rainha, viveu para manter o trono na família — afirma Vicente Ferreira.

A história conta que Maria da Glória teve um casamento feliz, apesar de fruto de um acordo. Ela tinha hábitos simples e andava a pé ou em carruagens com os filhos por Lisboa, onde mantinha contatos com outras mães e suas crianças.

Em Portugal, a princesa brasileira é lembrada como “A Educadora”, por estimular a educação e as artes no país.

Ao longo do anos, engordou muito. Ciumenta, passou a demonstrar ainda mais o sentimento em relação ao marido ao se tornar obesa. Artigo escrito pela pesquisadora Maria Luísa Paiva Boléo afirma que a rainha portuguesa chegou a afastar Dom Fernando dos embaixadores casados com belas mulheres.

Cartas ao mano

A princesa-rainha deixou muitas cartas, parte delas guardada na reserva técnica do Museu Imperial.

Com o irmão Pedro II, que Maria chamava carinhosamente de “mano” nas correspondências, tratava de assuntos familiares. Nas cartas oficiais que enviava ao Brasil, chamava o caçula de imperador, com toda a formalidade exigida.

Há ainda no museu objetos da princesa, como leques e tabaqueiras, parte ornamentada com imagens de Maria da Glória com seu pai. O material vai abastecer junto com outras peças vindas de Portugal a exposição “Dona Maria da Glória: princesa nos trópicos, rainha na Europa”, prevista para ser inaugurada em 7 de dezembro no Museu Imperial.

As comemorações ao longo do ano também incluem visitas de pesquisadores portugueses ao Brasil e a participação em seminários. Também estão previstos eventos em Portugal.

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