“A terceira onda é um tsunami”, diz Marcelo Matos, médico carioca que hoje atende em Portugal e relata explosão de casos de coronavírus e falta de insumos nos hospitais.
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Portugal vive hoje um “tsunami” de Covid-19. É o que afirma o médico brasileiro Marcelo Matos, 45, que atua na urgência de dois hospitais da região metropolitana de Lisboa. Os números corroboram a sua avaliação: em 28 de janeiro, o país chegou ao recorde de 16.432 novos casos.
Proporcionalmente ao tamanho da população, o dado equivaleria a quase 340 mil infectados diariamente no Brasil — que, na mesma data, teve 61.811 novos registros.
“Eu vivi todas as ondas do novo coronavírus em Portugal. A primeira [em março de 2020] foi uma marola, vimos o que aconteceu no resto da Europa e nos preparamos bem, não houve sobrecarga. A segunda [em outubro e novembro] foi mais puxada. Mas chegamos ao ápice agora. A terceira onda é um tsunami”, diz Matos à BBC News Brasil.
Ele relata um cenário de caos nos hospitais durante o pico das infecções, no mês passado, e afirma que, a cada 4 pessoas que chegam à emergência atualmente, 3 têm sintomas de Covid-19. “Na primeira onda, era o contrário, quase ninguém ia para o Covidário [nome dado ao espaço reservado aos casos suspeitos da doença nos hospitais].”
“Presenciei situações dantescas. Quando chegava para trabalhar, às duas da manhã, encontrava 60 pessoas à espera de serem atendidas (em dias normais, seriam cinco ou seis)”, afirma.
Ele explica que o sistema de saúde português utiliza pulseiras com cores para identificar a gravidade do quadro de quem chega ao serviço de emergência — o Protocolo de Manchester. De acordo com a escala, quem recebe a pulseira amarela (urgente) deve ser atendido em até 50 minutos, enquanto aqueles com a cor laranja (muito urgente) podem esperar no máximo 10 minutos — os vermelhos (emergência) são atendidos de imediato. As pulseiras verdes e azuis são dadas a casos menos graves.
“E quando entrávamos, era um desespero, porque só tinha gente com pulseira laranja. Tínhamos pacientes com essa classificação esperando 6, 7 horas. Eram tantos laranjas que o sistema colapsou, a gente não tinha nem como atender os amarelos”, conta.
“Eram pacientes graves, com baixa oxigenação no sangue. E a maioria deles idosos, muitos com doenças associadas. Portugal é um barril de pólvora [para a Covid-19], um país de idosos e fumantes.”
O médico carioca, que atua no país há três anos, diz que, nos piores dias, houve falta de insumos no hospital, algo que só havia visto no Brasil. “Não tinha mais rampa de oxigênio para usar, eram muitos idosos em macas, mal dava para andar dentro da urgência. Era um cenário de guerra”, afirma Matos, que vem trabalhando cerca de 70 horas por semana.
‘É um monstro que vai crescendo no hospital’
A médica gaúcha Nair Amaral, de 52 anos, relata um cenário semelhante. “Há um esgotamento da capacidade física do hospital e da capacidade humana, chegamos a um limite de não ter mais macas, precisaríamos de mais médicos, mais enfermeiros”, conta ela, que também trabalha no país há três anos.
“A direção do hospital foi abrindo cada vez mais espaço para a área Covid. É um monstro que vai crescendo dentro do hospital. Quando saí ontem, estavam derrubando mais paredes — você sai e, quando volta, a urgência está maior”, diz.
Até o último domingo (7), Portugal havia registrado 14.158 mortos pela doença, e um total de 765.414 casos desde o início da pandemia. Cerca de 40% das mortes (5.576) aconteceram no mês de janeiro, quando uma conjunção de fatores levou à explosão de casos no país.
Depois de ser visto como exemplo no combate à doença na primeira onda, no início de 2020, Portugal viu os casos de infecção pelo novo coronavírus começarem a subir em ritmo mais acelerado a partir do fim de setembro. O país registrou mais de mil infecções diárias pela primeira vez em outubro e, diante do crescimento de casos, passou a impor medidas mais duras — como o confinamento obrigatório a partir das 13h aos finais de semana — no início de novembro.
Com o número de novas infecções em desaceleração em dezembro, o governo decidiu flexibilizar as medidas durante o período de Natal. No feriado, os portugueses puderam se reunir com os seus familiares e viajar pelo país sem limites de horários ou ao número de pessoas nas celebrações – durante o Ano-Novo, porém, as restrições voltaram.
De acordo com especialistas, foi esse relaxamento, aliado à chegada da variante britânica do vírus à Portugal (apontada como mais contagiosa), o responsável pela alta descontrolada de casos a partir da primeira semana de janeiro — o país entrou novamente em lockdown no último dia 15.
Para Amaral, há ainda um terceiro fator que explica o agravamento da crise: a fragilidade dos doentes. “As pessoas estão há quase um ano sem acompanhamento habitual de saúde, fazendo apenas teleconsultas, com doenças negligenciadas”, afirma. “Nós passamos a atender mais doentes sem possibilidade terapêutica, doentes que chegam com um grau tão avançado da doença que não há mais escolha.”
Ela ressalta, no entanto, que as mortes não foram causadas por falta de recursos ou assistência nos hospitais. “Os leitos de terapia intensiva se esgotaram, mas a terapia intensiva entrou na urgência. Começamos a prescrever medicamentos que o paciente só receberia internado, na urgência — ele está recebendo, mas não nas condições em que deveria. É o que acontece nas situações de catástrofe.”
O número de novos casos no país começou a desacelerar no início de fevereiro, mas a média móvel de sete dias ainda era, na sexta-feira (6), de 7.270 casos. A projeção do governo é que o confinamento mais rígido dure ao menos até março.