Por EPOCA.
“É difícil olhar para o passado colonial português como tendo sido violento, de opressões”, contou a jornalista portuguesa Joana Gorjão Henriques. Autora do livro Racismo em português , lançado no Brasil pela editora Tinta-da-China, Henriques escreveu dezenas de reportagens descrevendo a presença ainda intensa das estruturas coloniais de exclusão presentes em Portugal e na África lusófona.
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Em suas reportagens, a jornalista, que escreve para o jornal português Público e colabora com o britânico The Guardian , chegou a traçar um panorama da dificuldade portuguesa, tanto em nível institucional quanto cultural, de lidar com a carga de seu passado colonial. Em pautas que tocam nos direitos humanos, também explicitou a profunda desigualdade e exclusão geradas pelo colonialismo nas sociedades africanas e portuguesas.
Para ela, um dos principais desafios do tema continua a ser desconstruir a “injeção de autoestima” para o povo português e a narrativa de um “colonialismo brando”, que gera assim um passado mítico e positivo para o país. Ainda assim, vê que o tema “é cada vez menos tabu” na sociedade portuguesa e que há “cada vez mais pessoas questionando” essa narrativa do passado.
De passagem pelo Rio de Janeiro para participar do festival Mulheres do Mundo , a lisboeta conversou com a ÉPOCA sobre a necessidade e urgência da tomada de consciência histórica do racismo e colonialismo do antigo império colonial português na Europa, no Brasil e na África.
Em muitas de suas reportagens, você falou na dificuldade — e negação — de Portugal em lidar com o seu passado colonialista. Como você vê essa situação hoje e a descreveria para um brasileiro? Como os portugueses enxergam suas ações como colonizadores?
Eu acho que isso tem vindo a ser cada vez menos um tabu. E é interessante verificar a forma como o debate tem evoluído. Houve, recentemente, uma polêmica [em Portugal] por causa da construção de um Museu dos Descobrimentos , depois chamado de Museu das Descobertas. Uma série de personalidades da intelectualidade portuguesa entrou no debate, que poderia ser dividido em dois campos. De um lado, os que contestaram esse nome, uma vez que há vários monumentos a fazer apologia ao descobrimento. Que mostram Portugal como colonizador e que foi descobrir o mundo. Outro grupo forte está justamente a defender essa posição. O museu foi proposto pela prefeitura de Lisboa e ainda não está construído.
Com isso, conseguiu-se perceber que há muita falta de informação sobre o que foi o passado colonial português. E que há muita gente sedenta de defender o país como tendo feito um colonialismo mais brando. Que teria se misturado mais, como o antropólogo e sociólogo Gilberto Freyre quis fazer parecer . E essa teoria sobre Portugal, do lusotropicalismo, foi muito bem incorporada e aceita pelo Estado português.
O que posso dizer é que uma fatia da população começa a questionar a história. É difícil olhar para o passado colonial português como tendo sido violento, de opressões.
E porque essa visão do colonialismo é tão aceita em Portugal?
Acho que, em Portugal, uma das razões pelas quais se gosta dessa narrativa é porque ela coloca os portugueses numa posição mais importante do que aquela que realmente tiveram. É uma espécie de injeção de autoestima em uma população de baixa autoestima. Esse é o último reduto da grandeza dos portugueses como nação. Por isso é tão difícil quebrar essa narrativa e que olhem e deem a importância devida à história da violência. Contemos a história como ela foi. Em especial, o tráfico de escravos, pois somos o país que mais traficou pessoas da África para as Américas . Somos responsáveis por metade do tráfico, e estamos constantemente a esquecer isso.
“Ela coloca os portugueses numa posição mais importante do que aquela que realmente tiveram”
JOANA GORJÃO HENRIQUES
sobre a visão do ‘colonialismo brando’ em Portugal
No Brasil, temos um presidente eleito que disse, em entrevista no programa Roda Viva, que “os portugueses nunca pisaram na África” para escravizar as populações locais. Como esse tipo de distorção pode alterar e moldar a discussão pública sobre temas como o colonialismo e o racismo?
Acho que impacta brutalmente. Uma criança ou adolescente que não sabe a história pode tomar isso como certo. E assim fica mal informado. Isso pode gerar coisas como essa defesa que o presidente quer fazer, de ilibar a população das atrocidades cometidas. E isso é tão grave que é preciso construir uma contra-narrativa que desmonte essas mentiras, essas fake-news da história. É importante que, quem tenha espaço e jeito para falar com o público, venha mostrar como isso se trata de uma distorção.
E porque há uma defesa do colonialismo português no Brasil, como essa feita por Bolsonaro, sendo que se trata de um dos países colonizados?
É uma questão de responsabilidade em primeiro lugar. Esses negacionistas têm enfatizado a ideia de que, agora, querem culpá-los pelo passado. Dizem que “não sou juiz da história, não posso responder pela culpa dos nossos antepassados”. Mas essa é uma situação que tem consequências no presente, e que deve ser assumida. Por isso há muita gente a fazer esse jogo do negacionismo, pois se trata de uma questão de culpabilização.
Com isso, não há uma tomada oficial de consciência dessa história de violência. Para dar um exemplo de Portugal, querem fazer o Museu da Descoberta, mas não há monumentos para as vítimas da escravatura. Essa tomada de consciência não existe como projeto político, nunca tivemos uma grande exposição sobre a escravatura, não temos na nossa academia uma investigação profunda sobre o tema. É um passado que está envolto em culpa. Não conseguimos sequer enfrentá-lo, quanto mais reconhecê-lo e repará-lo.
Você já fez inúmeras reportagens sobre o processo de descolonização na África lusófona. Que semelhanças e diferenças você enxerga com o processo brasileiro?
Acho que, em relação ao Brasil, que teve uma descolonização há muito mais tempo, a problemática é outra. Das pessoas que entrevistei nessas matérias, há várias posições, mas de fato a informação nas escolas de lá é muito maior sobre o que de fato foi o processo de colonização. Há uma consciência crítica que não esperava encontrar. E muitas histórias pessoais narradas, desde uma escritora que foi humilhada, em sala de aula, por ser negra, ao sujeito que se lembra de ter de ir para o banco de trás num ônibus porque havia divisão racial. Também há o caso do homem que vivia na roça em São Tomé e que se lembra do trabalho escravo forçado até 1974.
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