Motoboys brasileiros invadem ruas de Portugal


Por Gian Amato.

Facilidade para se inscrever nos aplicativos de entrega e baixo custo atraem trabalhadores que deixaram o Brasil para tentar a vida no país europeu.

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O brasileiro Paulo Gazzoli (terceiro da esquerda para a direita) foi assaltado dezenas de vezes no Brasil e decidiu imigrar para Portugal. Agora trabalha com entregas por moto para o Uber Eats. (Foto: Gian Amato / Agência O Globo)

“X” consulta compulsivamente o telefone celular. Checa as mensagens e o aplicativo de previsão do tempo. Torce para chover e fazer frio, condições ideais para arrumar trabalho. Quando o aparelho vibra e, ao mesmo tempo, exibe a temperatura de 8°C, com 95% de possibilidade de chuva à noite, ele sorri, sobe na moto e ganha as ruas geladas do Porto. “X” trabalha como estafeta, como são conhecidos os motoboys em Portugal. É uma profissão que praticamente não existia há dois anos, e a sua expansão coincide com a nova onda de imigração brasileira.

O mercado é dominado por brasileiros e, em certas cidades, eles dizem compor 90% dos entregadores. Na Uber Eats, que chegou ao país em 2017 de maneira quase simultânea à explosão do número de residentes oficiais (mais de 85 mil, segundo relatório do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, o SEF), a maior parte dos estafetas visíveis nas ruas é de imigrantes brasileiros.

Os brasileiros recém-chegados e regularizados encontram nessa função o sinal verde para começarem a trabalhar rapidamente. Podem dirigir com carteira de habilitação do Brasil dentro da validade, até que a troquem pela carta portuguesa. Para ganhar a mochila de entrega e virar parceiro da Uber Eats, basta ter mais de 18 anos, atividade de negócio aberta (como microempresário no Brasil), um número da Seguridade Social e o NIF, o CPF português. Estes documentos, por vezes, são obtidos antes mesmo do visto de residência. A moto pode ser alugada ou própria.

Mas pode encontrar esse tipo trabalho mesmo quem não preencha todos os requisitos obrigatórios e está com documentação pendente, que impossibilite o cadastro na Uber Eats. Caso de X, que diz entregar pela empresa usando a conta de outra pessoa.

—Ele me deu o login e a senha dele, e eu entro no aplicativo pela conta dele. Para a Uber Eats, quem faz as entregas é ele mesmo. Eles querem é que o produto saia do restaurante para a casa do cliente — contou X, que chegou do Brasil no fim de 2018, enquanto mostrava a tela do celular com a foto de outra pessoa no aplicativo, um amigo português.

Ao perceberem a grande demanda por esse tipo de trabalho, empresas foram criadas para atrair trabalhadores, que são terceirizados para as grandes companhias de entregas. Uma pesquisa no site OLX mostrou cerca de uma centena de novas vagas de estafeta entre Lisboa e Porto durante os primeiros 15 dias de março. Eles são classificados como trabalhadores por conta própria, chamados Recibos Verdes, sem direitos trabalhistas fixos, como seguro, férias ou subsídios.
Condições precárias

Parte dos procedimentos de contratação gera polêmica. Na última semana, o Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Hotelaria, Turismo, Restaurantes e Similares do Norte comunicou que vai reivindicar à Autoridade para Condições de Trabalho (ACT) melhores condições para a categoria. O órgão assinalou, em declaração à agência Lusa, que os trabalhadores são “explorados desenfreadamente” e que “há estafetas em completa ilegalidade por pedirem a familiares ou outras pessoas para passarem recibos por não terem documentos, e isso é trabalho clandestino”.

Algumas empresas alugam motos para quem deseja ser um motoboy da Ubereats. (Imagem-Reprodução)

Há pessoas que alugam o perfil por uma porcentagem do faturamento mensal. O procedimento de cadastro é feito de maneira autônoma. Os anúncios oferecem vagas para quem tem moto ou não, em meio expediente ou tempo integral. No site da espanhola Glovo, que recentemente encerrou as operações no Brasil, a empresa informa que, dentro dos requisitos, é possível começar a trabalhar em um prazo de até 24 horas, receber mais de €10/hora e rodar por quanto tempo achar conveniente.

Motoboys contam que a Uber Eats paga por quilometragem e número de entregas. No auge do inverno e dos pedidos de comida em casa, foi possível ganhar mensalmente € 1.200, equivalente a dois salários mínimos e entre € 35 e €40 por dia. Um salário considerado bom em Portugal. Mas, para isso, foi preciso rodar mais de 12 horas. Para quem não tem moto, é possível alugar uma scooter por € 90 por semana ou fechar um pacote pelo mês inteiro com um bom desconto. Também é possível fazer entregas de bicicleta.

—Quanto mais você roda, mais você ganha. Eu saio de casa na faixa das 9h e vou até às três da manhã. Eu viro a noite direto para poder tirar um bom dinheiro — disse Paulo Gazzoli, ex-dono de barbearia, que saiu de Vila Velha (ES) depois de ter sido assaltado dez vezes:

— A gota d’água foi um sequestro que eu sofri. Eu disse chega! E fiz as malas —completou Gazzoli, entre uma garfada e outra no almoço que pagou do próprio bolso, porque não recebe subsídio de alimentação.

Em cima de sua moto castigada pelos meses de estafeta a serviço da Uber Eats, o carioca Aramis Cruz explicava como cortou uma garrafa de plástico em duas partes e as acoplou aos punhos do guidão para improvisar proteções para as mãos. No frio abaixo de 10°C, o vento e a chuva tornam quase impossível a missão de guiar uma moto, mesmo com luvas. Aprendeu o truque quando era motoboy no Rio de Janeiro e precisava rodar na chuva. O jeitinho faz com que poupe dezenas de euros comprando o material adequado em uma loja especializada.

Enquanto Aramis mostra como funciona a invenção, um estudante português, que tirou a carteira recentemente, aproxima-se e faz perguntas. Quer trabalhar meio expediente de estafeta, entre os turnos das aulas na universidade. Considera o trabalho fácil. Na teoria.

—Eles acham que é subir na moto e sair fazendo entrega. Mas a diferença de Portugal para o Rio de Janeiro é que a gente tem que andar muito mais atento aqui, por incrível que pareça. Os motoristas ainda não estão acostumados com muitas motos nas ruas e não têm hábito de olhar no retrovisor e ligar seta. Qualquer coisa, enfiam logo a mão na buzina. Desnecessário — comparou Aramis, que disse morar há alguns anos no Porto.
De domingo a domingo

Ezequiel Souza dirigia um caminhão de lixo em Goiás antes de imigrar, em 2018, deixando a família no Brasil. Trabalhava de domingo a domingo para ganhar o suficiente para pagar o aluguel e as contas básicas em Portugal, como internet, água e luz. Mas pretende folgar pelo menos um dia por semana, para dar atenção à família, que agora também mora em Portugal. No inverno, garantiu que chegou a ganhar €120 em um dia.

— Mas isso só foi possível porque estava na rua direto, de domingo a domingo. Agora vou trabalhar de segunda a sábado. Agora que a família chegou, quero conhecer Portugal, onde dá para viver bem com pouco — disse ele, antes de aceitar uma entrega e acelerar a moto nova, que foi emprestada pelo cunhado em troca do pagamento de uma parte das prestações.

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