Por NEGÓCIOS.
Com a economia em ordem e a autoestima elevada, o país é um ecossistema em ebulição. Pelo terceiro ano consecutivo, o Web Summit, um dos mais importantes eventos de tecnologia do mundo, acontece em Lisboa.
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Depois de afundar numa das piores crises econômicas desde a Segunda Guerra Mundial, Portugal se reergueu com medidas drásticas. Cortou investimentos. Congelou gastos e carreiras. Reduziu os salários dos funcionários públicos. A cartilha da austeridade provocou dor e revolta, deixou cicatrizes mas deu resultado.
O desemprego caiu, o PIB subiu, e até a expectativa de vida de uma população já idosa aumentou. Junte-se à reconstrução econômica, o banho de autoestima: o país entrou na moda. Nos últimos anos, várias cidades são apontadas como ideais para se passear e viver. Tem mais.
Com projetos ousados e apoio do governo, Portugal vem chamando a atenção como centro de referência internacional em inovação e empreendedorismo. A prova? Lisboa ter sido escolhida para sediar até 2028 o Web Summit, um dos mais importantes eventos de tecnologia do mundo.
Para a terceira edição na cidade, a de 2018, entre os 250 palestrantes já confirmados, estão representantes da velha e da nova economia. De executivos de gigantes como Nestlé, Samsung, J.P. Morgan Chase, Google, Microsoft, eBay, Twitter, Booking.com e Tinder a porta-vozes da Comissão e do Parlamento europeus e do Vaticano. Resumindo, quem se importa com o futuro dos negócios tem encontro marcado em Lisboa, em novembro.
O Web Summit nasceu em Dublin, na Irlanda, em 2010, atraindo a atenção de pouco mais de 400 pessoas. Seis anos depois, o evento foi para Lisboa e, desde então, só fez crescer. “Estávamos fascinados pelo potencial e pela efervescência do ecossistema tecnológico de Portugal”, diz o irlandês Peter Gilmer, 37 anos, diretor executivo do Web Summit. Na primeira edição em solo português, a conferência reuniu 53 mil interessados.
Para este ano, são esperados 70 mil. Para se ter uma ideia, em 2017, as palestras transmitidas pelo Facebook atingiram a marca de 18 milhões de pessoas. “Econômica e culturalmente, Portugal vive ‘O’ momento”, define Gilmer. O ritmo de crescimento do mercado português de startups é duas vezes e meia superior ao da média europeia, segundo a empresa Startup Europe Partnership. E Lisboa aparece na lista das melhores cidades do mundo para se começar um negócio.
Além da mão de obra qualificada, da economia pujante (crescimento de 2,7%, no ano passado) e do sentimento de autoconfiança, Portugal avança como nação high-tech graças ao, como define Gilmer, “impressionante” apoio governamental. Foi criado, por exemplo, um fundo de € 200 milhões para estimular o investimento estrangeiro em startups portuguesas.
A Câmara de Lisboa e a incubadora Startup Lisboa já deram início à construção do Hub Criativo do Beato. Instalado em 35 mil m2, em um antigo complexo fabril do exército, na zona ribeirinha lisboeta, o centro deve ser um dos maiores espaços para o empreendedorismo na Europa. Com o incentivo do governo, a Startup Voucher funciona como uma rede nacional de hubs tecnológicos, cujo objetivo é oferecer bolsa de um ano para que 400 empreendedores desenvolvam seus projetos.
Em janeiro de 2017, o governo lançou o Indústria 4.0, programa com cerca de 60 medidas para valorizar, promover e investir na digitalização da economia. Entre as principais propostas, estão a formação tecnológica de cerca de 20 mil trabalhadores, gestores e empreendedores e a transferência de parte dos negócios para as plataformas digitais.
O objetivo não é outro senão enterrar de vez a má fama dos produtos made in Portugal. “O Indústria 4.0 é a resposta das empresas a várias crises”, diz Jorge Portugal, diretor-geral da Cotec, a associação empresarial encarregada de estimular, monitorar e cobrar a implementação do programa. “A indústria se reconfigurou: abandonou os produtos de baixo valor e investiu para ser mais rápida do que o concorrente.” Um dos setores que melhor espelham essa mudança é a tradicional indústria calçadista.
Submetida à competição internacional e a tantas outras dificuldades internas, quase naufragou de vez, mas emergiu com força, amarrada a tecnologia e design. Proliferaram modelos e marcas valorizadas. O couro foi mais bem aproveitado. O “banho de juventude” elevou o calçado português a um patamar até então inédito: o das prateleiras mais caras da Europa.
Frente a um ecossistema econômico tão dinâmico e em franca expansão, é natural que Portugal receba o reconhecimento internacional e atraia a atenção de gigantes, como mostram as notícias a seguir:
- No início do ano, o Google confirmou o país como sede de um novo centro tecnológico, para o qual vai contratar 500 profissionais qualificados.
- Em junho, a BMW, uma potência alemã na corrida dos veículos automatizados, anunciou parceria com a Critical Software — empresa criada em 1998, por três doutorandos em engenharia da computação da Universidade de Coimbra.
- No ano passado, a Mercedes-Benz criou um delivery hub em Lisboa, de onde pretende desenvolver soluções e produtos para o mundo.
- Em março, a também alemã Foursource levou para o Porto o quartel-general de uma plataforma B2B, conhecida como “Tinder do vestuário”.
- A Vestas, líder mundial em energia eólica, decidiu abrir também no Porto um novo parque tecnológico, semelhante aos que mantém na Dinamarca, Reino Unido, Noruega, Alemanha e Índia.
- A alemã Bosch inaugurou em maio um polo de tecnologia, imprescindível para seu projeto do carro do futuro.
É, aliás, de Carlos Ribas, representante da Bosch em terreno português, a frase que sintetiza os esforços do país em sua nova fase: “Queremos sair do made in Portugal para o invented in Portugal”. Na fábrica da companhia alemã, em Braga, desenvolvem-se soluções de mobilidade para diversas marcas. “Fazemos parte de um número restrito de unidades da Bosch, que trabalha para que a internet das coisas proporcione uma condução mais segura, mais confortável, sustentável e 100% autônoma”, explica Ribas. Saiu de Braga, por exemplo, o sistema eCall para motos. Obrigatório na União Europeia para automóveis e motocicletas, o programa aciona o socorro automaticamente, em caso de acidente. Graças ao GPS, os socorristas podem se deslocar até o local do acidente, caso o motorista ou algum passageiro não responda à chamada de áudio.
Apesar da equidade de competência, os engenheiros portugueses ainda ganham menos do que os alemães. Em um passado não muito distante, para se sobressair entre outros países europeus, Portugal gabava-se de sua mão de obra barata. Há cerca de dez anos, uma comitiva oficial, em visita à China, usou esse argumento para chamar a atenção para o país. Esse tempo passou. Maio passado, durante evento, em Londres, o primeiro-ministro português António Costa destacou a estabilidade econômica e política como grande atrativo para investimentos estrangeiros. Sem contar, é claro, os dias de sol, lembrados sempre nos vídeos oficiais. “O tempo há de nivelar a diferença de salário entre os funcionários portugueses e os demais europeus”, diz Carlos Brito, pró-reitor para Inovação da Universidade do Porto.
Enquanto isso, universidades e associações empenham-se em mostrar o valor de seus jovens. “As universidades produzem conhecimento, mas as empresas precisam de soluções”, define Brito. “Nosso desafio é transformar esse conhecimento em solução.” Processo, segundo ele, que deve estar embasado em três pilares: a proteção à propriedade intelectual, promoção de parcerias entre a academia e as grandes companhias e a criação de spin-offs. A Bosch, por exemplo, mantém uma estreita colaboração com a Universidade do Minho, na cidade de Braga. Desde então, a parceria já recebeu € 76 milhões em investimentos e mobilizou cerca de 400 engenheiros e pesquisadores.
De 1911, a Universidade do Porto é celeiro de 25% das invenções científicas registradas no país. Seu parque de tecnologia abriga 180 empresas, entre as quais gigantes como a Microsoft, Vestas, Alcatel e Vodafone. Considerada uma das startups mais inovadoras do mundo, a Veniam nasceu nos laboratórios da Universidade do Porto. Em 2012, os professores João Barros e Susana Sargento desenvolveram uma “internet das coisas móveis”, ao transformar os veículos em rede emissora e difusora de sinais da internet. A Veniam já possui filial no Vale do Silício, mas os cérebros das operações continuam em Portugal.
À frente do fenômeno que transforma o país em referência mundial de inovação e empreendedorismo, estão jovens como Nuno Oliveira. Depois de ter de ficar em casa quatro meses recuperando-se de um problema de saúde, “com tanto tempo para pensar”, ele decidiu se lançar no incipiente mundo da impressão 3D. “Era algo muito novo — uma ideia, não um negócio ainda”, conta Oliveira, formado havia dez anos em engenharia de materiais. Ex-integrante de uma banda eletrônica, comunicativo e um tanto irrequieto, ele montou um projeto e se inscreveu para uma vaga no IdealLab, o laboratório de novos negócios da Universidade do Minho. Oliveira foi selecionado para um programa de apoio da Associação Nacional dos Jovens Empresários (ANJE). Ele recebeu € 18 mil em dinheiro, consultorias e viagens para os Estados Unidos, Alemanha e Israel. Assim nasceu, poucos meses atrás, a Xpim, cujo portfólio já conta com uma centena de clientes. As máquinas montadas pela empresa de Oliveira imprimem objetos tão grandes quanto uma máquina de lavar.
A efervescência pela qual passa o ecossistema high-tech de Portugal, aos poucos, transforma o país. A quase 400 quilômetros de Lisboa, a cidade mais antiga do país, fundada em 16 a.C. pelo imperador César Augusto, Braga hoje é um hub tecnológico de projeção global. Além da Universidade do Minho, há quatro anos lá está sediada a Startup Braga. Com 45 empresas incubadas atualmente, já apoiou 115 empresas. Entre elas, a Sword Health, que conseguiu US$ 4,6 milhões para investir num programa de fisioterapia remota, e a Ruby Nanomed, startup para o uso da nanotecnologia na detecção de metástases em pacientes com câncer.
Outro centro de alta tecnologia baseado em Braga é o Laboratório Ibérico Internacional de Nanotecnologia (INL, na sigla em inglês). Inaugurado há dez anos, o INL é fruto de uma parceria entre Portugal e Espanha e também recebe recursos da Comunidade Europeia. Suas instalações são tão futuristas quanto as invenções que saem de seus laboratórios. De diversas nacionalidades, os cientistas do INL dedicam-se a investigar a aplicação da nanotecnologia à saúde, às coisas e aos alimentos. “A nova geração quer ser parte e não escrava de algo”, diz o sueco Lars Montelius, diretor-geral do INL. “Portugal está tornando possível inventar e fazer aqui mesmo.”
O empreendedorismo português tem raízes históricas. Em especial, na Revolução dos Cravos, que, em 1974, livrou o país de quatro décadas sob o regime salazarista. Portugal testemunhou o surgimento de uma onda de empreendedores, responsáveis pela base de boa parte da indústria atual. Entre eles estava o pai de Adelino Costa Matos, presidente da ANJE e CEO da ASM Industries, fabricante de equipamentos eólicos. Depois dessa primeira leva de investimentos, muitos se afastaram da indústria, conta Matos.
Alguns deixaram o país. Conforme um estudo da Universidade de Coimbra, um quinto da mão de obra qualificada portuguesa imigrou com a crise. “A partir de 2010, a geração millennial assume o posto, com outro perfil, mais propenso ao risco”, diz Matos, que, junto com os irmãos, dá continuidade e expande o negócio inaugurado pelo pai. “Antigamente, as falhas eram mais punidas, o investimento era muito pesado. O empreendedor tecnológico espalha esperança porque sabe que a falha é experiência acumulada.”
Ainda que o futuro se anuncie promissor e que o entusiasmo contagie a todos, há obstáculos a vencer. Migrar o setor produtivo para plataformas digitais, como propõe o programa Indústria 4.0, não é fácil. Requalificar 20 mil trabalhadores, também não. A burocracia ainda persiste e a prevalência de empresas pequenas também atravanca o processo. “Há um desequilíbrio entre o ritmo de assimilação de tecnologia e a capacidade de renovar a força de trabalho”, diz Jorge Portugal, da Contec.
Apesar do ambiente prolífico em inovação, algumas das mais promissoras startups são compradas logo depois de fundadas, alertam Alberto Onetti, coordenador da Startup Europe Partnership (SEP), e Pedro Falcão, sócio da LC Ventures, fundo de investimento em tecnologia. Nada menos do que 94% das startups portuguesas adquiridas por multinacionais têm menos de cinco anos de existência. Esse fenômeno parece corroborar o sucesso das iniciativas portuguesas, mas a pesquisa, assinada por Onetti e Falcão, adverte: “A colheita muito precoce no ambiente das startups pode impedir que jovens empresas floresçam e cresçam por conta própria”. O desafio mais simbólico, porém, é o de Portugal se manter como país da inovação e garantir a realização do Web Summit em Lisboa em 2019. A cidade-sede do evento ainda não foi escolhida, e candidatos não faltam.
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