Afinal de contas, o que é bacalhau?


Por Carla Peralva.

Fui enviada às águas frias do Mar do Norte para pescar o verdadeiro bacalhau. Cheguei à Noruega querendo um belo peixe para a Páscoa, mas não deu certo: os noruegueses já estão às voltas com o bacalhau do Natal – entre o peixe ser pescado e virar, de fato, bacalhau, são mais de dois meses, fora o percurso de navio até aqui.

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Eis um bacalhau vivo, no aquário de Ålesund, na Noruega. O peixe da espécie ‘Gadus morhua’ é o bacalhau “real oficial”. (Foto: Peder-Otto Dybvik)

Na viagem, fiz outras descobertas interessantes. Bacalhau não é um único peixe, não é uma técnica de salga e também não é uma receita. É tudo isso. A palavra bacalhau dá nome a três coisas.

  1. Qualquer peixe da família Gadidae, entre eles o nobre e valorizado Gadus morhua, pescado no extremo norte do Atlântico, e o Gadus macrocephalus, seu primo menos popular e de carne menos nobre, que vive no Pacífico.
  2. Peixes de cinco espécies submetidos a processos de salga e secagem (confira quais no fim do texto).
  3. Um prato específico da culinária norueguesa (o bacalao, um cozido delicioso com tomate, cebola e batata, servido com pão preto).

Eis um bacalhau vivo, no aquário de Ålesund, na Noruega. O peixe da espécie ‘Gadus morhua’ é o bacalhau “real oficial”. Foto: Peder-Otto Dybvik

Bem, agora vamos à parte prática dessa história: o que é bacalhau? No Brasil, o que se encontra no mercado é o bacalhau salgado e seco.

De acordo com os dados do Conselho Norueguês da Pesca (NSC, na sigla em inglês), o mercado português é o que mais consome bacalhau salgado no mundo, o equivalente a 20% de todo o bacalhau capturado a nível mundial.

Ele pode vir do belo arquipélago de Lofoten, no Círculo Polar Ártico – no ano passado, o Brasil recebeu 18 mil toneladas de bacalhau vindo da Noruega, o que equivale a quase 20% da produção do país. De lá, chegam tanto o Gadus morhua (o bacalhau “real oficial”), quanto as espécies Saithe, Ling e Zarbo. Além disso, por aqui também recebemos o bacalhau do Pacífico, de menor qualidade. Eles têm diferenças de textura e sabor, como você confere abaixo.

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Da pesca à salga

O bacalhau (o peixe) é uma criatura do frio, então, já fica a dica: nada de fogo alto ou longos tempos de cozimento. Ele passa seus primeiros anos no Ártico e, adulto (entre 2 e 4 anos), nada durante o inverno até as águas rasas da costa norueguesa para se reproduzir.

A temporada de pesca vai de janeiro a abril e tudo se aproveita do peixe. A famigerada cabeça do bacalhau é seca e exportada para países como a Nigéria, onde é usada em caldos; a língua e os músculos da garganta são tradicionalmente cortados por crianças e consumidos como petisco frito; o fígado serve para se extrair óleo; as ovas são consumidas salgadas (caviar) e curadas (bottarga).

De Lofoten, os peixes viajam já limpos (sem cabeça e tripas, mas ainda inteiros) e congelados para a “capital do bacalhau”, Ålesund, cidade de estilo art nouveau cravada em meio aos fiordes da costa central.

Nas fábricas familiares, são abertos um a um e dispostos em camadas, intercaladas com grandes quantidades de sal marinho. Ficam assim de três a quatro semanas. Depois, são dispostos em paletes de madeira e vão para câmaras ventiladas, onde secam por mais uma semana. E só aqui que nasce o bacalhau.

Depois de salgados, os peixes são secos em paletes de madeira dentro de câmaras ventiladas. (Foto: Carla Peralva/Estadão)

Secos e molhados

Ele é prova viva de como a cultura gastronômica é colaborativa. Os pioneiros na pesca foram os vikings, que secavam peixes para conservá-los nos barcos. A salga veio no século 11 com os povos bascos. Mas são os portugueses os donos do maior receituário de bacalhau salgado e seco do mundo.

A Noruega salga e seca seus peixes pois há demanda externa para isso – mais de 95% da produção é exportada, sendo Portugal e Brasil os maiores consumidores. Em Portugal o peixe é consumido fresco ou apenas seco.

A carismática chef Siv Hilde Lillehaug serve bacalhau fresco e seco em seu Lofotmat, no norte da Noruega. (Foto: Carla Peralva/Estadão)

Para provar o bacalhau de todas as maneiras como ele é consumido no país, a dica é visitar Henningsvær, uma ilhota de Lofoten com apenas 450 moradores que gira em torno da pesca, onde a chef Siv Hilde Lillehaug recebe os visitantes de sorriso aberto em seu Lofotmat, um dos cinco restaurantes da vila. Em sua cozinha aberta para o salão, ela faz o caviar do jeito que aprendeu com a avó e serve sobre flatbrød (pão chato norueguês) com creme azedo e beterraba. A língua é empanada e frita, petisco servido com picles e molho tártaro. O skrei, o bacalhau fresco, tem sabor delicado e desmancha na boca. Já o stockfish, bacalhau seco, tem textura mais seca e sabor pungente (é o stoccafisso consumido pelos italianos).

É ele que domina as paisagens da ilha. As montanhas nevadas são cercadas por pequenos barcos e tomadas por hjells (fala-se i-éls), varais de madeira onde peixes são pendurados para secar ao vento. Sem sal, sem tela, sem nada, uma técnica eficiente de conservação criada pelos vikings, que se valeram da geografia das ilhas norueguesas: muito vento, baixas temperaturas, ar seco. Ele fica três meses nas varas externas e, depois, quase um ano em galpões bem ventilados.

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Como escolher o tipo de bacalhau

O nome da espécie do peixe deve obrigatoriamente constar na embalagem, de acordo com uma nova portaria do Mapa, de 23 de janeiro de 2019. Isso ajuda na hora da compra: as variedades têm muitas diferenças, especialmente na textura e no sabor.

Os tipos de bacalhau: Zarbo, Saithe, Gadus morhua e Ling. (Foto: Carka Peralva/Estadão)

● Gadus morhua – O mais nobre, de posta alta que se desmancha em lascas. É untuoso e suculento. Também pode ser chamado de bacalhau do Porto. Pescado no Atlântico Norte, é o bacalhau “real oficial”.

● Ling – Carne macia, que se desfaz em lascas. Vai bem cozido ou apenas selado na chapa.

● Saithe – O de “sabor de peixe” mais intenso. Bom para saladas, brandade e outros preparos desfiados, como o bolinho de bacalhau. Também rende um bom ceviche, basta dessalgar e marinar. É o mais vendido no Brasil.

● Zarbo – Tem textura mais rija e “esfarelenta”. Menos valorizado, é melhor desfiado.

● Gadus macrocephalus – Bacalhau do Pacífico, menor e e de coloração mais clara que o do Atlântico. Também rende bons lombos, mas sua carne só pode ser desfiada.

Como comprar bacalhau e outras dicas
Quando for escolher uma peça de bacalhau, certifique-se que ela está seca e sem qualquer parte visivelmente úmida. A cor da carne pode variar de branco até amarelo-palha (cor mais clara não significa qualidade), mas descolarações, manchas prateadas ou vermelhas podem indicar má conservação.

É possível comprar o bacalhau seco e salgado ou já dessalgado e congelado. A escolha é sua, mas saiba que não é difícil dessalgar bacalhau em casa – aprenda como aqui.

Ao comprar bacalhau já em lascas ou pedaços (e não o lombo), possivelmente você estará comprando partes das ‘asas’ e da barriga do peixe (olhe na foto acima: são as áreas mais externas “do triângulo”, mais finas que o lombo). Isso não é um problema, mas faz diferença na textura: são pedaços normalmente mais fibrosos e menos untuosos. Vale lembrar que o bacalhau já é um peixe com pouquíssima gordura.


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